A série “Cartas a um jovem”, da editora Campos, que já tinha em seu acervo obras como “Cartas a um jovem político” de Fernando Henrique Cardoso e “Cartas a um jovem administrador” de Idalberto Chiavenato, conta agora com uma obra de Marcelo Gleiser, intitulada “Cartas a um jovem cientista”.
Gleiser me fez lembrar do orgulho que costumava sentir ao ler livros escritos diretamente no português. Primeiro, por uma valorização das mentes nacionais que sabem, sim, produzir material de qualidade sobre ciência voltado ao grande público. Depois, pela excelência no estilo, que por não passar pela famigerada tradução, que costuma empobrecer a forma, transmite as ideias que saíram diretamente da pena do autor.
O livro é um trabalho meticuloso, criativo e muito bem humorado, a começar pelo próprio argumento: trata-se de uma sequência de cartas escritas pelo autor a um Marcelo Gleiser que existiu trinta anos atrás, num acordo de que o jovem Marcelo as esquecesse logo a seguir de lê-las, como um sonho cuja memória é esquecida ao acordar. Assim, surge um livro repleto de lembranças e reflexões que ajudariam qualquer aluno (não só o jovem Marcelo), que pretenda ser um acadêmico, a encarar mais de frente as dúvidas sobre o significado da carreira, as dificuldades da graduação, do doutorado e das atividades enquanto profissional, tanto as relativas às de pesquisa, como às de sala de aula, um ambiente apresentado como sendo complementar.
Gleiser é muito inspirado em todas as oito cartas (ou capítulos). Verdade que tive meus favoritos, mas isso unicamente por tratarem de questões que circulam em minha esfera de interesse. Por exemplo, é na carta “Contos de heroísmo” que Gleiser relata brevemente (!!) as trajetórias científicas de Copérnico, Giordano Bruno, Galileu, Newton, Kepler, Darwin e Einstein. Também é lá que está uma das reflexões que me fez mexer na cadeira. Transcrevo: “Em ciência, o que importa é o ‘como’ e não o ‘porquê’ das coisas. [...] Quando perguntaram ao próprio Newton por que objetos com massa se atraem com uma forma que decresce com o quadrado da distância, sua resposta foi bem simples: ‘Não arrisco nenhuma hipótese.’ Ou seja, não é importante (o que não significa que não seja importante) saber a causa da atração entre as massas; apenas como ela ocorre. [...] A física é, essencialmente, uma descrição da Natureza. Devido à sua própria construção, baseada em princípios cuja validade é observável mas não necessariamente explicável, ela será sempre incompleta. É duro para um estudante de física ou química aceitar isso”.
Outra carta que me chamou a atenção é “A Natureza, essa sedutora”, em que o autor relata a forma como sua evolução na compreensão da Natureza afetou suas reflexões sobre o sagrado, e migrou desde uma posição cristã para se tornar algo como um ateu espiritualizado. De imediato, eu o associei com um panteísta: “aquele que tem a percepção da natureza e do Universo como divindade. Ao contrário dos deístas, ele não advoga a existência nem de um Deus criador do Universo, tampouco das divindades teístas intervencionistas, mas simplesmente especula que tudo o que existe é manifestação divina, autoconsciente”. É, sem dúvida, das cartas mais autobiográficas, e considero que ele conseguiu transportar o leitor a uma perspectiva poética de mundo, sem importar se nos pareça ou não verdadeira.
Em suma, o livro faz uma rica explanação sobre o ambiente e objetivos do trabalho de um cientista. Valoriza as dúvidas da juventude e as dificuldades que ela impõe. Diz inclusive terem sido necessárias para sua formação (daí o trato de esquecer as cartas depois de serem lidas). É um bom livro, que pode sim ser eficiente em introduzir a um secundarista conceitos importantes nessa fase conhecida por ser a fase das decisões. Recomendado!
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