quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Deus para um ateu

Nesse post apresentamos uma entrevista concedida por Francisco Bressy Junior, psicólogo e ateu bem resolvido, onde conversaremos sobre religião, deus e seus símbolos, e do papel dessas instituições como formadores da identidade.

Nascido numa familia de religião plural, com o pai evangélico, a avó católica, e a mãe frequentando um centro de umbanda. Iniciou a primeira comunhão, mas foi na igreja evangélica onde mais se envolveu com o mundo da fé... antes de abandoná-la.



Rodrigo Amarante Colpo: Como foi o processo para que você abandonasse a religião?

Francisco Bressy Junior: Com o tempo eu comecei a perceber que a ideia de deus oferecida pela religião [evangélica] e a prática das pessoas eram incoerente com o meu deus, ou melhor, com a minha construção de deus. Deixei de conseguir estabelecer uma relação entre essas ideias: a ideia geral de deus, a minha ideia de deus, e a prática geral das pessoas. Deixou de fazer sentido pra mim.
Foi quando eu comecei a questionar os valores que eu tinha introjetado enquanto tinha deus em minha vida: não roubar, não matar, respeito ao próximo, amor. Foi essa a parte mais difícil, pois quando você cresce tendo a religião como referência, roubar passa a ser errado simplesmente porque deus castiga. É bastante simplório, mas deus passa a ser referencia do sim e do não. Do certo e do errado. Deus interfere de uma maneira muito ampla nos nossos valores.

RAC: A concepção de deus daria os princípios morais básicos para as pessoas se comportarem, e sem deus ficamos sem essas referências que partiriam do externo?

FBJ: É claro que esses não são todos os casos, é apenas uma fração deles onde as pessoas têm dificuldade em estabelecer esses princípios sem se referir a deus. Essas foram questões muito difíceis para um adolesce de 14 anos, que não tinha muitas referências sem ser essa. As pessoas que estavam a minha volta também tinham apenas essa referência. Foi bastante doloroso.

RAC: Quer dizer que para você conseguir estar firme nessa posição cética você teve primeiro que passar por essa reformulação de si? Ser capaz de criar os próprios princípios, baseados nas suas vontades, necessidades e desejos? A moral a qual as pessoas se apegam seria por não conseguir construir uma própria?

FBJ: Quando você começa a desenvolver a lógica, você logo percebe que deus não é lógico, mas consegue conviver com isso. Tipicamente passamos por essa fase de questionar o mundo na adolescência, e essa época foi fundamental para eu amadurecer e formar uma personalidade própria, assim como é para todas as pessoas, e as críticas sobre esses assuntos foram sim fundamentais para minha formação. Quando você usa deus como referência, você faz um tipo de construção. Quando você deixa essa ideia de lado, você tem que reelaborar seus valores.
Deus é uma ideia muito antiga. Quando o homem começa a ter uma relação diferente com o mundo daquela que têm os animais, passamos a ter como mediação entre as coisas e as nossas necessidades, o nosso pensamento, a abstração. Passamos a perceber o mundo de uma forma não imediatista. Surge a noção de tempo, de significado, de sentido, e ai eu penso que para esse homem antigo a ideia de deus surge como uma solução fantástica, uma estratégia para dar significado a tudo, porque ele começa a pensar o mundo e esse mundo é destituido de significado perante a morte.
Quando falo do meu ateísmo, a primeira questão que costumam me fazer é sobre a morte: “Então para você morreu, acabou?”. Eu entendo que exista uma dificuldade com essa questão, mas para mim isso nunca foi desesperador. Como disse, o mais difícil foi manter os valores que eu tinha construído sobre os alicerces de deus e da religião.
Então surgiria deus para dar significado a vida e introduzir reguladores sociais baseados na moral. Que outro animal tem a moral na estrutura social? É certo que há regras sociais baseadas na hierarquia, mas é completamente diferente. O homem tem capacidade para fazer perguntas ao mundo, mas se vê constantemente perdido na busca por respostas.

RAC: Há diversos círculos em que deus é utilizado sistematicamente como uma válvula de escape para quando a resposta parece inacessível. Dependendo do assunto em discussão, podemos ouvir com alguma frequência argumentos de autoridade que se resumindo a “porque Deus quer”. Mas a ciência já explica muitas questões que antes eram deixadas para deus, e vemos a ciência passar a ocupar, cada vez mais, um papel semelhante a da religião na vida de muitas pessoas, com o “porque um cientista falou”.

FBJ: As pessoas precisam de respostas, e elas buscam isso em toda parte.
Quando ao tópico anterior, parece que minha visão não explica tudo, porque temos ao longo da evolução humana, muitos milhares de anos, e houve um desenvolvimento cultural e biológico nesse meio tempo. Como se explicaria o apego a uma ideia tão antiga?
Quando se fala de desenvolvimento cultural de um valor que vai passando de geração em geração, como são exemplos os valores morais, falamos de ciclos muito difíceis de serem quebrados. E porque as pessoas não mudam no mesmo ritmo que o desenvolvimento tecnológico e científico? Simplesmente porque as velocidades de transição não são as mesmas, pois as novas tecnologias e a religião interagem com partes muito diferentes do organismo psicológico de todos nós.
Existem algumas teorias dentro da própria ciência que ajudam a explicar esse fenômeno. A herança multifatorial, por exemplo, fala da relação entre nossos genes e o meio ambiente, o que pode afetar o nosso comportamento. Os genes são os mesmos ao longo de toda a nossa vida, mas eles podem vir a ser ativados ou desativados de acordo também com fatores ambientais, sejam eles hormonais, infecciosos ou até do nosso estado de espírito. Ou seja, o ambiente é sim um critério de modificação gênica, que deixa marcas que vêm depois a afetar as próximas gerações.

RAC: A seleção natural, baseada na adaptação, fornece também algumas pistas sobre como a necessidade de deus pode ter passado através dos genes. Por exemplo, uma pessoa em risco eminente de morte e que acredita numa proteção, qualquer que ela seja, terá mais chances de sobrevivência que uma que pensa estar só. Ocorre que nossa mente evoluiu para ser lógica, e basicamente nos tornamos a espécie dominante devido ao nosso cérebro. Portanto, nós avaliamos probabilidades e prevemos comportamentos. Nessa situação de risco acreditar na sobrevalência da pequena chance de sobrevivência, devido a uma interferência externa, é uma vantagem evolutiva. Assim, aquele que crê tem, efetivamente, mais chance de sobreviver e passar seus genes adiante.

FBJ: Sim, é uma outra visão.

RAC: E se a crença em deus é geneticamente motivada, o que levaria algumas pessoas a acreditarem e outras não? Será que as pessoas que questionam a existência de deus não têm tantos apegos emocionais a essa ideia, ou tenham uma visão mais complexa do mundo?

FBJ: É muito difícil falar sobre isso porque pode parecer soberba, e a condição de quem acredita é a mesma de quem não acredita. Não somos diferentes uns dos outros. É apenas um posicionamento diferente que, na minha opinião, traz apenas uma elaboração emocional pouco maior sobre questões como o que é a vida e a morte. Mas isso não se reflete, necessariamente, para outras questões de mundo. Somos todos igualmente bons e competentes.

RAC: Mas é fato que existe uma diferença de paradigma a partir do qual você encara o mundo. Quais são algumas dessas diferenças?

FBJ: Acho que quem não acredita em deus é menos preconceituoso, não só sobre as religiões dos outros, mas também sobre outros aspectos aparentemente alheios à religião. Talvez eu esteja me tomando como exemplo, mas é fato que eu não me sinto pertencente a nenhum grupo especial. Eu não vou nem para o céu, nem para o inferno. Não acredito que meu destino seja diferente ao de qualquer outra pessoa. Não acredito em pecados, mas em relações simbólicas que as pessoas têm com o mundo. Por isso, me sinto pertencente e pertencido à Natureza, onde não há lugares especiais.
E isso é de cada um. Eu percebi que a ideia de deus não é valida para mim, mas para muitas pessoas deus e a religião são uma necessidade. Faz parte da forma delas de elaborar o mundo, e existe uma vantagem psicológica em acreditar em deus.

RAC: E será que as pessoas que crêem em deus acabam externalizando parte da responsabilidade das suas próprias vidas, seja quando pedem ou agradecem por alguma “graça”, como se não fossem elas as responsáveis, seja quando maldizem deus quando algo de ruim lhes acontece? E os ateus, não acreditando nessa entidade, acreditariam mais em si, quando se tornam inteiramente responsáveis por aquilo que fazem, sejam essas coisas ruins ou boas?

FBJ: Quando falamos em biologia, a quê isso lhe remete?

RAC: Ao estudo da vida.

FBJ: Sim. E se eu lhe falar de outros temas que lhe são familiares sempre haverá algo com o qual você associe, que está ligado com a forma como você se relaciona com o tema em si. E na psicologia uma questão fundamental é o simbólico, de forma que não posso afirmar que não acreditar em deus implica numa falta de responsabilidade pelos atos, embora tenha certeza que isso aconteça com alguns crentes.
Eu mesmo sou cheio de defeitos, como qualquer outra pessoa. Há momentos em que eu duvido daquilo que posso alcançar, mas tento acreditar nas minhas forças. Busco ter consciência dos meus defeitos e limitações, que podem ser de ordem genética, ou devido a minha história de vida. Mas o como se formaram as fraquezas e sucessos é irrelevante. O que importa é a relação simbólica que você estabelece com esses fatos, e deus é simbólico.

RAC: "Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você" - Sartre.

FBJ: Exatamente. O mundo é simbólico e algumas pessoas precisam de alguns símbolos. Não há problemas com isso. Entretanto, tenho dificuldade em lidar com pessoas que acreditam que a sua verdade é a verdade do outro, e me preocupam pessoas com um ferfor religioso exacerbado, pois essas pessoas geralmente têm certezas que querem impor aos outros. E eu também tenho as minhas certezas, mas são certezas diferentes. Elas têm que incorporar a ideia do outro ao seu mundo.

RAC: E a questão da morte, pode falar um pouco mais sobre isso?

FBJ: (risos) Quando eu era criança tinha um funk que dizia “morreu, fedeu”. Isso tinha uma mensagem: “morreu, acabou”. Mas na Natureza nada desaparece, apenas passa a existir de uma outra forma. O desespero das pessoas é em aceitar que passarão a existir no mundo de uma outra forma que não essa. Mas elas poderão até participar de outras formas de vida.

RAC: Sem dúvida a forma como nossa matéria passará a existir no mundo mudará depois da morte. Mas não te angustia a falta da TUA continuidade?

FBJ: Sou assumidamente alguém que deseja ter filhos. Acho que essa é a forma natural de continuidade. Não preciso buscar por outras formas fantásticas de alcançar essa continuidade.

RAC: “Ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore”. É sobre isso que estamos falando?

FBJ: Sim. Essas são formas de continuar no mundo. Pretendo um dia escrever um livro. Na verdade, não sei se tenho capacidade para tanto, mas sei que tenho capacidade para fazer um filho, então vou investir nisso (risos). Mas você também pode permanecer no mundo pela ação, pelo exemplo, lutando por um mundo melhor, e eu acredito que cultivo essas atitudes.

RAC: Você acredita que a morte trás angústia para as pessoas por pensarem que assim deixarão de fazer parte do mundo?

FBJ: O animal não pensa na morte, o animal só vive, ou seja, existe uma condição biológica em resistir à morte. Entretanto, o animal não tem o cérebro para elaborar essas questões.

RAC: Quer dizer que o cérebro poderia ter conferido a nós um instrumento para resistir à morte utilizando a figura de deus? Racionalizando assim a resistência biológica e natural à morte?

FBJ: Também. Deus tem vários significados, e esse é um deles. Acredito que os mais importantes sejam elaborar a morte e dar sentido à vida.

RAC: “O homem vive no mundo e pergunta pelo sentido da sua existência. É uma velha pergunta da humanidade que não poder ser reduzida ao silêncio. Vivemos e trabalhamos, suportamos encargos e cuidados, sofremos e alegramo-nos, experimentamos êxitos e renúncias, vamos envelhecendo e sabemos que  no termo está a morte. Para quê tudo isso? Vale a pena viver? Qual é o sentido do nosso existir?” – E. Coreth [citação completa introduzida posteriormente].

FBJ: Você pode significar sua vida das mais variadas formas. Muitos dos fanáticos religiosos resolvem devotar suas vidas para difundir sua fé, e nisso assumem um grande perigo, pois o que fazem os fanáticos quando alcançam seus objetivos, ou quando percebem que estão alicerçados sobre bases frágeis? Se perdem. Não saberão mais qual sentido dar ao próprio existir, e qualquer ameaça externa aos seus princípios norteadores é prontamente e violentamente rejeitada.
Mas questões de significado são de ordem muito pessoal e de elaboração muito difícil. Como eu não sou religioso, acho que pouca coisa tenho a dizer sobre isso.

[Se você gostou (ou não) do post, dê sua opinião nos comentários. É legal saber que alguém se interessa]

3 comentários:

  1. Gostei bastante da entrevista.
    Sou crente convicto e creio que não me enquadro em muitas situações descritas como atribuíveis aos crentes porque estes foram mencionados de maneira muito generalista. Até a forma como vejo Deus é diferente da que foi dita como própria dos crentes...
    Entretanto, está bastante bem conduzida e o entrevistado é muito elegante ao expor sua opinião sobre um tema tão delicado.
    Indicada para ateus e crentes que tenham a xícara vazia :P
    Parabéns

    ResponderExcluir
  2. Ótima entrevista, Rodrigo! Vocês dialogam bem. Legal você informar quando uma citação foi introduzida posteriormente! Honestidade intelectual é isso. Uma crise religiosa na adolescência me fez concluir que, se houver uma divindade benfazeja, ela deve gostar de mim porque faço o possível pra ser gente boa. Parabéns pelo alto nível do blog! Abraço!

    ResponderExcluir
  3. Vc é bom na Politicologia....
    Concordo com Gabriel, você foi muito elegante ao questionar e conduzir a entrevista de forma inteligente e instigante. Conseguistes, do começo ao fim, manter a atenção do leitor para um assunto realmente delicado e polêmico.
    Parabéns!
    Eliane Amarante (Mammy)

    ResponderExcluir