segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O texto e o escritor. A obra e o artista. O conceito e a concepção.

Eu vivo, sinto, recebo e ofereço. Troco constantemente com aquilo que me cerca. E escrevo. Nem sempre bem, nem sempre com a fluidez que o tema merece, mas sempre com empolgação. E quando sinto que o texto está maduro e o aprecio, ainda sobra o gosto na boca do dever cumprido.
As informações vêm do mundo, eu as interpreto, modifico e coloco-as para fora da maneira que sou capaz e, então, você compartilha um pouco do meu mundo, que é agora também um pouco parte do seu. No fundo, é só mais uma forma de apreender a realidade, assim como qualquer arte. (E assim como qualquer arte, também tem os pretensos artistas.)
O texto é arte que provoca reflexão, como com Hobbes, Montesquieu ou Kant; que desperta os sentidos, com Shakespeare, Guimarães Rosa ou Vinícius de Morais; e lhe transporta pelo impossível, com Mary Shelley, Isaac Asimov ou Arthur Clarke. E ainda assim, cada ideia e cada palavra, cresceu antes dentro de uma alma inventiva que tem paixão pelo contar.
Posso falar do gosto e textura das palavras mesmo sem nunca tê-las provado, mas as vivo e recordo (tudo ao mesmo tempo), inventando sensações que na verdade já estão em mim. E quando escrevo memórias do real, também vivo o novo, mas dessa vez dentro de mim mesmo. Lembro, remexo, associo. Tudo volta e, pela força do momento, volta com o ímpeto de vir inteira e deixar marcas. Volta egoísta, me amarra e me submete a esse trabalho sujo de ser seu interprete, como um mediador entre as ideias (que parecem agora ter vida própria, tamanha a força com que me movem) e você.
E o texto cresce, toma corpo, identidade, e sinto que em breve será capaz de seguir seu próprio rumo. E eu estou feliz em ser seu mediador.
Não sei o que será dele quando estiver maduro e não depender mais de mim. Quando eu jogá-lo aos leões do julgamentos dos outros (os seus!). Queria mesmo poder estar aí, sentado ao seu lado, a sussurrar em seu ouvido e coração o que essa ideia me comunicou. Queria que fosse permitido a eu e você termos algum enamoramento de almas, e você sentir o que eu senti.
... mas não posso.
Então, você e ele travarão uma relação própria e independente de mim, repleta de sentimentos e reflexões que não me alcançaram, pois parte indispensável da relação de vocês, é você, suas histórias e o seu momento hoje. Agora. Sobre isso não posso fazer mais que um amigo que torce distante pelo sucesso da relação de um casal que se paquera.
É inclusive provável que o autor, numa leitura posterior de seu texto, perceba nuances, segundas possibilidades e ambiguidades que pensava não existir quando o escreveu. Não que o texto seja outro, mas mudou o sujeito que interage com ele. Estamos em modificação e o texto se organiza segundo o novo momento de seu interlocutor. Permite-se então ser descortinado por um outro ângulo que já estava lá, latente e ansioso por se ver descoberto e debatido.
Nesse caso tão especial, pelo qual tenho tanto carinho, a ideia se define apenas pelo conjunto de dois que se encontram e se constroem, pela junção do que "está ali" com o que está "aqui", ambos importantes e complementares.

Abaixo, fragmento de entrevista com o sábio, escritor e poeta argentino Jorge Luis Borges (1899 - 1986), em que é abordado também o tema do post.



Thanks to @CarrozzinoRigby por suscitar a discussão e Ricardo Miguez pelas conversas inspiradoras.

9 comentários:

  1. Bom saber que Borges também faz parte de seu vasto círculo de amigos invisíveis! Parabéns!

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  2. Vamos abrir nossa bocarra pro mundo. Depois vamos vomitar tudo. Depois selecionar as melhores gosmas. E deglutir novamente. Regurgitofagia. Abs, Michel Melamed.

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  3. Sabe quando a gente lê um texto e diz: 'eu poderia escreve-lo'? Então, não foi o caso. Porque eu não seria capaz de escrever tão claramente. Costumo pecar pelos rodeios ou pelas piadas internas comigo mesma.

    Enfim, no campo das idéias, respeito o que li agora como se tivesse saído do meu próprio coração.

    beijos.

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  4. Emocionante esse texto, dá pra perceber o quanto de "alma" você pôs aqui. Eu sei que isso soa cafona, mas foi a minha impressão. O leitor é o co-autor do texto, como bem disse Lêdo Ivo.

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  5. Vc sempre me surpreendendo (positivamente)!!
    Muito interessante seus textos. Me fez refletir (parece ser esse seu objetivo, além de "dividir vc" com quem passa por aqui).
    Adorei! Vou voltar mais vezes. Sei q é repetitivo, mas... AMO VOCÊ, rsrs. Bj em seu coração.

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  6. É. A arte de escrever é muito peculiar mesmo. Eu curti muito a sua metáfora de terminar de escrever um texto e 'jogá-lo aos leões' do julgamento. Acho que é por aí mesmo. Depois do escrito, ou melhor, do escrito e publicado, o texto segue seu próprio rumo sem a anuência de quem o escreve.

    Sabe, eu achei tudo isso muito sábio, gostei do seu ponto de vista!

    Abraços,

    Igor

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Muito bom o texto. Foi um dos meus preferidos. Esse trecho é bem verdade. Isso sempre acontece comigo. "É inclusive provável que o autor, numa leitura posterior de seu texto, perceba nuances, segundas possibilidades e ambiguidades que pensava não existir quando o escreveu. Não que o texto seja outro, mas mudou o sujeito que interage com ele."

    Parabéns pelo Blog, tenho orgulho de segui-lo.

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  9. "Foi mais que uma surpresa, foi um choque. Encontrar alguém falando que escrever é acima de tudo um ato de coragem, coragem de se expor, de arriscar. De olhar para dentro de nós mesmos e descobrir o outro, porque não existimos sem essa relação. Escrever é uma forma de falar aquilo que não pode ser dito. É mostrar o que muitas vezes não queremos em nós mesmos e dar para o leitor como um presente feio e sujo, alguma coisa que entregamos sem esperar nada em troca. Escrever é não deixar que o peso caia sobre nossas costas porque o verdadeiro escritor é aquele que usa as suas palavras pra se denunciar e denunciar o que o leitor nunca teria coragem de falar."
    Lido no filme "Bruna surfistinha"

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