quinta-feira, 24 de junho de 2010

Pessoa sem paixões - Conto

Uma pessoa sem paixões se debruçava sobre pilhas de papéis a resolver problemas matemáticos. Fazia-o mecanicamente, eficientemente, há anos. Uma rotina que lhe rendeu antes mesmo dos trinta anos a solução analítica de dois desses problemas de topologia que assombram matemáticos há não menos de 150 anos.
Era bom, dos melhores, e famoso por seus feitos. Mas não tinha paixões e parecia ver a vida em cor sépia. Cobria-lhe a sensação de que tudo que havia era de plástico, incluindo ele próprio, um ser artificializado.
Quando lhe perguntavam o por quê de ter escolhido trabalhar com tanto afinco, sentia reproduzida uma pergunta que fazia-se ele mesmo todos os dias ao dormir e ao levantar. Mas polidamente respondia: “Saber que existem aplicações do meu trabalho que melhoram a vida de muita gente, e os números não são uma companhia ruim”. Era essa a resposta a ser dada. Mas ele mesmo era incapaz de extrair prazer do sorriso alheio, e os números eram simplesmente a melhor companhia com quem conseguia conviver, não que fosse exatamente boa.
Nesse mundo estranho, em que pode existir pessoas desse tipo, há também alguém em quem as paixões cresceram, criaram raízes e deram flores e frutos com quem presentear os que estão à volta. Era uma pessoa querida pelo que era efetivamente, não pelo que fazia. Inclusive porque não conseguia terminar nada do que começava. Suas vontades e impulsos dominavam seu corpo e sua mente. Era um ser de emoções a saltar de atividade em atividade, assim que a primeira dificuldade se apresentava, ou se antes, que acenasse um outro prazer maior.
Era também um ser incompleto, que apesar de amado, não amava tanto a si, pois julgava ser maior do que se mostrava. E nos momentos em que os risos pausavam a solidão de si mesmo lhe alcançava. Então, era difícil ser ele.
Sentia no fundo que podia mesmo ser maior, e enxergava a criatividade criadora como um meio para estar mais próximo de quem se é. Mas como alguém que quase não cabe em si mesmo poderia respirar fundo e procurar com calma o que tem de melhor, com tantos impulsos a sussurrarem em seu ouvido? Nesse mundo parecia uma batalha perdida para ele mesmo.
Mas num desses dias em que o “acaso bate à porta”, essas duas pessoas se cruzaram, e por novo espaço de tempo o homem “com” paixões tem num novo foco: o homem “sem” paixões.
O homem “com” se intriga e encanta com a possibilidade da existência do “sem”. Seu oposto e sua metade. Alguém capaz de criar durante horas a fio com um mesmo objetivo em mente. Alguém que parecia poder enfrentar questões sem pressa a procura de respostas, e saber exatamente onde investir seu tempo e sua energia. Ter essa persistência parecia um sonho, e quando percebeu a quantidade de trabalhos que “sem” havia publicado e o número de vezes que seu nome foi citado mundo afora, quis aquilo para si.
“Com” propôs a “sem” de lhe dar algumas das suas paixões. De que “sem” abrisse o seu peito e tirasse algumas poucas delas, uma a uma. Seria um processo no qual “sem” ficaria incapacitado de expressar qualquer reação, mas o bem a ser conquistada é tão invejável que o medo de tentar sequer lhe passa à mente.
“Sem” não vê motivo prático em aceitar a proposta, ou motivo algum para rejeitá-la, mas movido pela vontade, braços, pernas e mãos de “com”, percebe-se realizado a operação. Aquele peito parecia muito maior por dentro que por fora, com emoções conflituosas, medos recalcados e paixões ardentes de sabores deliciosos. Uma orgia de momentos a entrelaçar-se sem critério óbvio.
“Sem” então pinçou a primeira das emoções que parecia procurar-lhe, e veio a ansiedade, depois a curiosidade. Depois “(nem tão) sem” sentiu o vento frio a bater-lhe no rosto junto com os primeiros raios de sol; a dor revigorante de um banho frio e a água quente a relaxar-lhe corpo; o sabor do sorvete de morango, de creme, de chocolate, e de napolitano; o barulho que faz o cabelo quando é massageado e da cachoeira quando a água cai. E gostou. Genuinamente gostou de algo pela primeira vez em sua vida. Tomado pelo prazer, não conseguia parar, e foi até um céu estrelado, uma praia deserta e uma noite de amor. Conheceu a diferença do toque de tantos e de alguém especial. Se sentiu protegido quando estava com medo, e protegendo quando estava amando. Se sentiu frágil, sem ver nisso um problema. Uma mistura de sensações lhe tomava e dominava, compulsivamente dava cores ao mundo que ansiava por motivos, e teve contornos de privilégio por ter acesso a essas sensações.
Então parou. Não havia mais nada a ser tirado dali. Inclusive o medo mais profundo e os motivos da memória mais negada, que eram os mais escondidos e apegados àquele que agora era o “sem”, haviam sido capturados. Parou saciado, a passar a língua nos lábios como se todos aqueles prazeres e medos fossem palatáveis, tendo cada um seu sabor, e um motivo para os guardar.
Largou os instrumentos, e acordou “sem”, que de olhos abertos ainda parecia estar dormindo. Agradeceu com um sorriso doce e deu-lhe as costas despreocupadamente, deixando “sem” a sua própria sorte. Abriu a porta. A noite chegava e o mundo suplicava por ser desbravado e o passado a ser esquecido.

Thanks to @mendesgabriel, @igdias, @kindabitlost.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ponto, Linha, Plano - Pra falar um pouco de arte

Perambulando pelos corredores da UERJ, a procura de uma professora, entrei desavisadamente em uma palestra sobre um artista de nome Kandinsky (1866 - 1944). Logo percebi que a professora não estava lá, mas com uma série de imagens magníficas passando à minha frente, quem diz que ainda vou lembrar de procurar a tal professora?
Kandinsky iniciou carreira trabalhando com a arte concreta e aos poucos foi migrando para a abstrata. Essas duas fases produziram obras muito características, e transponho para cá uma citação e um quadro de cada umas dessas fases. (Você pode clicar nas imagens para vê-las em formato ampliado.)

"Partimos da ideia de que, para além das impressões que recebe do mundo exterior, da natureza, o artista acumula continuamente experiências de seu mundo interior. Nós procuramos formas artísticas que exprimam a interpretação de todas estas experiências, formas que devem ser libertas de tudo o que é acidental, a fim de expressar fortemente apenas o que é necessário."

Quadro "Par a cavalo" / "Couple Riding" (1906)


“Fiquei em certa ocasião encantado com uma visão inesperada no meu ateliê. Era aquela hora em que o crepúsculo avança. Regressava a casa com a minha caixa de tintas...e subitamente vi um quadro incrivelmente belo, banhado por cores interiores. Primeiro, fiquei parado, mas depois aproximei-me rapidamente deste quadro misterioso, no qual apenas discernia formas e cores e cujo conteúdo me era incompreensível. Logo encontrei a chave do enigma: era um quadro meu, encostado de lado contra a parede. No dia seguinte tentei, à luz do dia, recriar a impressão que o quadro evocara em mim naquele fim de tarde. Apenas o consegui em parte: mesmo de lado, reconhecia sempre os objetos e faltava-lhe o véu sutil do crepúsculo. Compreendi então que o objeto prejudicava meus quadros... Sentia cada vez mais precisamente ser o desejo interior do sujeito que determina imperiosamente a forma...a separação do domínio da natureza fez-se para mim cada vez mais, até que me foi possível considera-los cada um em si mesmo, como absolutamente distintos.”

Quadro "Amarelo, vermelho e azul" (1925)


O título do posto "Ponto, Linha, Plano" vem do título de um dos livros de Kandinsky, lançado em 1926.

Resumo: adorei não ter encontrado a professora.

domingo, 13 de junho de 2010

"Einstein" no Rio!


"Einstein" é o nome da exposição que rolou no Museu Histórico Nacional - Rio de Janeiro – entre abril e junho. Foi uma exposição mega interessante, originalmente montada pelo Museu de História Natural de NY, trazida ao Brasil pelo Instituto Sangari, e que agora vai abarcar em Vitória. Portanto, capixabas, não deixem para o último dia (que é um caus), e vejam a exposição com toda a calma que ela merece (umas 3 horas).
Essa foi minha primeira experiência com monitorias em exposições, e foi muito significativa. Adorei ser um daqueles com uma camisa azul escrito “educador”. Acompanhávamos a criançada nas explicações sobre relatividade, buracos negros, energia e o bruxo mau (esse era Hitler). Sempre gostava de estabelecer esse diálogo com os escolares, e acreditar que eu estava acrescentado algo ao mundo deles. Me fez bem!
Na exposição aprendi também que Einstein não era nem aluno brilhante na escola, nem matemático brilhante na carreira; que tinha uma letra que beirava e ilegibilidade; que teve duas esposas e que não foi fiel a nenhuma; que teve três filhos, dois dos quais morreram, e o que sobrou disse “provavelmente o único projeto a que meu pai abriu mão foi eu”; que escreveu a carta que talvez tenha dado origem ao projeto Manhattan, responsável pela construção da bomba atômica; que diversas vezes negou o que as equações estavam lhe indicando, tendo como argumento a isso o “senso comum”; que passou décadas lutando contra a física quântica e que morreu sem saber que estava errado; e que em poucos anos conseguiu acumular prestígio científico suficiente para passar quase trinta anos pesquisando sobre uma teoria que nunca deu resultados, sendo pago por isso.
Isso para não falar que em 1905 já havia, há anos, uma série de evidências experimentais (experiência de Michelson-Morley) e teóricas (equações de Maxwell) a apontar para a teoria da Relatividade Especial. Einstein, por estar atento a essas discussões, parece ter sido aquele capaz de juntar os cacos das informações já dispersas e montar uma estrutura teórica que as explicasse.
Mas calma, calma!! Não achem que estou menosprezando essa grande personalidade. Só quis pegar-lhe um pouco no pé para não repetir somente o mesmo rosário de elogios. Pois bem, agora falemos das coisas que valem mais a pena de serem lembradas.
Einstein ousou pensar de forma diferente a gravidade newtoniana. Propôs, em 1915, teoria revolucionária na qual a gravidade deixa de atuar como força e passa a ser uma distorção do espaço-tempo, tornando-o mundialmente conhecido depois de sua confirmação em 1919, na cidade de Sobral, Brasil. Admiro não apenas a teoria e suas implicações, mas também a história de sua formulação, que não foi fruto de um momento de inspiração, mas de anos de trabalho árduo, que mereceram do autor o seguinte comentário: “A Relatividade Especial, ao lado da Geral, parece brincadeira de criança”. Essa é das características mais marcantes de seu trabalho acadêmico: a persistência num campo de trabalho que se mostra constantemente árido, onde os resultados parecem fugir por entre os dedos.
Esse e outros trabalhos têm grande influência inclusive nos dias de hoje, pois trouxeram a base teórica para a criação do laser, da máquina digital, da precisão do GPS, dos painéis solares, da radiação de luz sincroton, dentre outros.
Entretanto, o que mais me chama a atenção é a sua atuação enquanto homem político. Diferentemente dos padrões que geralmente temos de um cientista, esse ministrava palestras não apenas sobre suas teorias e o progresso da ciência, mas fazia questão de falar sobre suas convicções pacifistas. Trocou cartas com Freud (que ficou espantado com essa iniciativa) e Gandhi. Assinou e divulgou manifesto pelo fim da primeira guerra, e depois pelo desarmamento nuclear. Escreveu centenas de cartas de recomendação para que refugiados de guerra pudessem ingressar nos EUA. Se opôs abertamente a perseguição aos comunistas encabeçada pelo senador Joseph McCarthy. Escreveu contra o serviço militar obrigatório. Defendeu inclusive a paz mundial através da constituição de um governo mundial, argumentando que enquanto os governos nacionais fossem a instância máxima de poder, ela não se viabilizaria, podendo ser a ONU uma instância transitória a esse governo.
Costumo pensar que geralmente as pessoas se significam na coletividade. Mas existem algumas raras que conseguem influenciá-la diretamente. São pessoas que durante o curto tempo de uma vida produzem marcas positivas suficientes que multiplicam, ecoam e impulsionam a humanidade a, juntas, darem um passo adiante. Einstein parece ter sido uma dessas pessoas.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Eu e meus botões

Quando era criança lembro-me de olhar para frente e pensar "posso ser o que eu escolher ser", pensava sobre mim mesmo como um poço de possibilidades. Provavelmente foi uma frase que algum adulto falou para mim, assim como falaria para qualquer criança, mas aquilo me enchia de expectativas e sonhos. E a realidade, de fato, não é muito diferente disso, quando se é criança e se tem pais com possibilidades financeiras para bancar essas escolhas. Mas o tempo vai passando, aniversários vão sendo cumpridos, e essa realidade vai se distanciando enquanto a criança se transforma num adulto.

Parece haver uma janela de tempo onde certas escolhas são mais propicias a se tornarem realidade, quer dizer, a facilidade e disponibilidade de tempo e paciência que uma criança possui para aprender um instrumento musical ou ser alfabetizada já não são as mesmas de uma pessoa em idade adulta, assim como as possibilidades de escolhas profissionais vão se afunilando com o passar do tempo.

O caminho que vai na contra-mão da "escolha profissional" parece ser o mais comumente traçado. Este seria justamente o do fluxo das necessidades e estímulos socioculturais. Falo aqui não somente sobre um contexto "sociocultural" desfavorecido, mas destaco justamente a juventude da classe abastarda, onde "fluxo das necessidades" é a falta de necessidade e os "estímulos socioculturais" podem ser associados, em muitos casos, ao do "bom vivan".

Não há, em absoluto, algo de anômalo neste comportamento, pois é justamente o que se espera da juventude: um período de escolhas! E com tantas opções aflorando diante de nossos olhos é difícil falar "é isso que eu quero" com uma real reflexão a respeito (e geralmente com nenhum conhecimento de causa). As escolhas parecem ser volúveis... E o tempo vai passando e aniversários vão sendo cumpridos...

Enfatizo essa questão do tempo porque vem de acordo com reflexões recentes: após dois anos em um curso de graduação em psicologia percebi não ser aquele o meu sonho de vida e vi comprometida minha satisfação a longo prazo. Então fui defrontado com uma situação fora dos planos familiares, a de assumir o erro em ter escolhido pela psicologia e seguir rumo a uma nova fronteira, a física.

Curioso pensar que um jovem que julgava ser o horizonte o limite, e que tinha como um de seus passatempos planejar o futuro, tenha essa história. Ao longo da minha infância e adolescência já quis ser ator, químico, biólogo, geneticista, astronauta, astrônomo, astrofísico, físico, psicólogo e físico, nesta ordem.

Já na faculdade de física, numa das primeiras aulas, houve um exercício para se calcular a média e mediana das idades dos alunos da classe. Meus colegas tinham 17, 18 ou 19 anos, e eu, em meus 22 anos e fora do desvio padrão, tive um pouco de vergonha da minha história e da falta de firmeza quando, pela primeira vez, pensei na física como plano de futuro. Depois me pensei ser simplista por ter sido contaminado por essa história idiota de que "você tem que entrar na faculdade com 17 anos".

Por certo que existe um período de tempo em que as escolhas são mais fáceis de serem feitas, mas seres humanos não são feitos em série, existe uma individualidade em cada um de nós, e é principalmente esse tempo que temos que levar em consideração: o tempo necessário para a maturidade. E assumir as conseqüências desse ritmo.

Lembro de uma historia que li sobre um pianista que após uma grande apresentação recebeu fãs em seu camarim, e um deles disse "eu daria minha vida para tocar igual a você". O pianista teria respondido "então faça, porque eu dei a minha". Esta é uma decisão difícil, e com a falta de experiência é possível confundir interesse com propósito de vida.

Esta talvez seja uma das decisões mais complexas que uma pessoa deve tomar, pois envolve abrir ao de uma série de outros prazeres em detrimento a um propósito, ao longo de anos de dedicação. Neste contexto, é difícil inclusive para adultos terem consciência da real significância dessa escolha, e não impressiona que adultos em formação sejam volúveis e receosos nesse momento.

Falando francamente, talvez eu não estivesse preparado para seguir a carreira de físico aos meus 18 anos. Não por não saber lidar com as dificuldades que a graduação em física iria me impor, mas pelo DESCONFORTO DA CURIOSIDADE de “como teria sido se eu tivesse me tornado psicólogo?”. Essa seria uma pergunta que me perseguiria por anos, ou talvez pela vida inteira. Mas após essa experiência tenho uma noção melhor da resposta, o suficiente para que ela não me venha à mente com angústia.

“Experiência”... gostei dessa palavra, pois penso que se encaixa perfeitamente com a fase dos meus 18. Uma fase de se experimentar, se colocar em prova e descobrir quais são meus legítimos interesses; sem dúvida um dos inconvenientes de pessoas que têm afinidade e facilidade por áreas muito diferentes, e o medo em não me focar em nenhuma delas, ficando apenas na superficialidade de um vasto conjunto de assunto é algo que ainda me assombra.

Hoje, NOVAMENTE, tenho um plano bem delimitado: quero me graduar em física e seguir uma vida acadêmica, realizando pesquisa sobre astronomia e alguma contribuição com divulgação científica. Trata-se de um investimento a longo prazo, que para bons resultados não me custará menos de 15 anos de esforço continuo, onde acredito que a caminhada também será muito prazerosa.

Já diziam os filósofos que a única constante no universo é a mudança, e acredito que nesse processo toda ajuda que vier deve ser bem vinda. Trata-se de um movimento difícil que repetidamente reconstrói nosso ser e nos permite VISLUMBRAR O MESMO CENÁRIO A PARTIR DE UM ÂNGULO DIFERENTE.

Abraços a todos!