Antes de mais nada, esse não é espaço para crítica de cinema. Se procuras por uma crítica mais séria de “Tudo Pode Dar Certo”, de Woody Allen, feita por alguém que sabe fazê-la, clique aqui. Eu quero apenas conversar com vocês sobre algumas ideias que esse filme fez surgir em minha mente, mas sem spoilers.
A busca por sentido está presente em cada um de nós, é um dos fardos da complexidade humana. Buscamos por sentido na família, no trabalho, na religião. Conquistar um espaço onde possamos nos sentir frágeis, mas seguros por saber que não há ali o que temer. Isso porque é na fragilidade que somos autênticos, e faz parte da vida estar em contato com nós mesmos.
Mesmo sabendo quem se é, ainda parece difícil se ligar a um desses lugares/pessoas sem projetar ali um pedaço de nós, visto que é naquele espaço que parte de nós encontra possibilidade de se manifestar... e quando nos vemos apartados dela, é difícil lembrar que aquele pedaço está em nós, não do lado de fora. Então existe o luto que dói, não por se perder o outro, mas sim por se julgar ser também onde nos encontramos a morrer ali.
E o que acontece quando não sabemos quem realmente somos? Nos voltamos ao externo, a procura de referenciais para nos construir, para justificar nossa existência, e nos apropriar. Podemos então ansiar pela “sorte de um amor tranquilo”, por filhos e viver no cuidado deles quem somos, como meio a deixar um legado imaterial ao mundo. Queremos estar com alguém que possamos chamar silenciosamente de “meu”, que depende de nós e de quem dependemos. Queremos pertencer e nos sentir pertencidos... pela dificuldade em dissociar o que está lá fora, com o “pouco” que está “aqui” dentro.
Essas são questões que afloraram pelo filme “Tudo Pode Dar Certo”, de Woody Allen, onde todos os personagens parecem buscar por significação, cada um a sua moda, mas ainda assim, o mesmo processo.
Os personagens são bem estereotipados e os diálogos, às vezes, meio forçados. Mas esse é um dos trunfos do filme: não é a história de um personagem, é a história de uma procura que se apropria dos personagens para ser explorada. Quando entrei no ritmo do filme, tudo me pareceu inclusive bem natural.
São quatro personagens que estão em foco, e vi em cada história um pouco de mim mesmo, do meu vizinho e das histórias que estão estampadas nos romances. Como dito, cada um deles tem a sua própria maneira de procurar se justificar e construir.
O personagem principal, Boris, um físico, tem uma vida bem organizada, com um discurso pronto sobre diversos aspectos da vida, estruturado sobre os próprios alicerces de mundo. É uma pessoa mais velha do que a idade denuncia. Uma pessoa de New York em cuja perspectiva de mundo consigo enxergar muito de mim mesmo (ou das minhas angústias).
Boris faz parte de um seleto, restrito e invejável (a meu ver) grupo de pessoas que conseguem olhar para si mesmas e se justificar a partir dos próprios princípios, não dos externos. Que consegue efetivamente estar bem com elas próprias e seus pensamentos, sem a necessidade de um Faustão no domingo, de um filme de Sessão da Tarde ou um alguém para desejar bom dia e boa noite, pois não tem medo da solidão que mostra os vazios.
Partilhando o set com Boris, o físico, estava Melody St. Ann Celestine, a ingênua. Uma jovem que sequer sabe a diferença entre uma ironia mal feita e uma verdade dita à cru. Melody surge literalmente como uma pessoa atirada no mundo, fugida de casa, sem nenhum referencial de pessoas, instituições ou crenças onde recorrer ou a quem se apegar. É boba como uma criança que não vê maldade no mundo, e é quase a contragosto sendo abrigada por Boris.
Melody, jovem e cheia de vida, se apropria rapidamente dos valores de mundo de seu anfitrião, alcançando a paródia de um bom partido precisar ser mal humorado e conhecer Teoria das Cordas. Obviamente, pessoa alguma parecia à Melody mais interessante que àquele que a ensinou o que é ser interessante. Os dois se casam e passam a vier o mesmo mundo: o de Boris.
A história desse casal é uma caricatura exagerada do que são muitos dos casais modernos, em que o laço que os mantém unidos deixou, historicamente, de ser uma dependência financeira e estrutural, para ser transformada numa procura de uma identidade/sonhos conjuntos e alguém em quem projetar parte da responsabilidade da própria felicidade.
Esse é um processo muito perigoso, pois se aproximar do conjunto costuma significar se afastar de si. Passa-se a viver a identidade da relação, e deixa-se de seguir na procura de quem realmente se é. Sem medo de errar, digo também que esse movimento torna a “Melody” uma pessoa menos interessante, pois deixa de ter a possibilidade do brilho nos olhos que tem o poeta quando percebe vislumbrar algo pela primeira vez, e capaz de criar algo pelas próprias mãos.
Esse comportamento cria laços fortes de dependência emocional, e faz com que pessoas aceitem grandes tormentas para poder ainda ter ao lado aquele “companheiro(a)” que passa a ser o motivo de suas vidas. A possibilidade de perda dele(a) a colocaria numa condição de ausência de motivos, pois a falta de estímulos alicerçados nos próprios sonhos (pela negligência de si, para si) antecipa o medo da sensação de vazio que se anuncia. Parecem não perceberem o que deixam de ganhar com a “solidão” delas mesmas, em sair de casa e ir fazer um curso de fotografia, roteiro ou física... enfim, cuidar um pouco delas.
Acredito ser frase típica do espírito “Melody”: “por detrás de um grande homem, existe sempre uma grande mulher”. Extremamente machista, sugere que a pessoa se diminua, por assumir que não se tem a força suficiente para correr atrás dos próprios sonhos. Acho que aí está o cerne da questão: força suficiente. Deixa-se de acreditar em si mesmo como sendo capaz, potente.
Entretanto, ninguém é mais capaz de ser a pessoa Melody, que Melody. Ou vai saber fazer melhor a pessoa Rodrigo, que o próprio Rodrigo. No momento em que se opta por tirar os anseios de Rodrigo de circulação, ele deixará um buraco no mundo, indubitavelmente.
Outra personagem é a mãe de Melody e, quando a conhecemos, ficamos a entender um pouco mais da história prévia de sua filha. Vivendo num casamento frustrado, tolhida das possibilidades de expressão, projetou na filha alguns dos ideais de felicidade que tinha para si. Melody nunca foi Melody, e sua mãe nunca esteve realmente feliz.
Por fim, o pai de Melody (que também não lembro o nome) diz ter sua “virilidade” amputada pelo casamento. Numa cidade do interior onde a repressão reina, esteve sempre preocupado com o que falariam os vizinhos, a família e os colegas de faculdade. Com o tempo perdeu a espontaneidade numa sociedade artificializada. Então, ao chegar em New York, percebe não ter a quem justificar seus atos, e livre a seguir suas vontades mais íntimas; é então feliz, pela primeira vez, desde a infância.
"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos" - Marguerite Yourcenar.
Thanks to: Woody Allen pela inspiração, @silentangelrj pelas contribuições e aos que passaram e me somaram.
Demorou, mas o post do filme saiu. Esse texto passou por algumas transformações até chegar nesse formato. Na verdade, sintetizei aqui um processo de amadurecimento pessoal que transpassou anos, embora mencionados de maneira sutil e tão breve.
ResponderExcluirEspero ter acrescentado.
Forte abraço,
Rodrigo.
'Quando entrei no ritmo do filme, tudo me pareceu inclusive bem natural.'
ResponderExcluirmais ou menos isso aí que senti.
que bom que Woody Allen te inspirou, pra alguma coisa aquele tarado de musas cinetográficas serve.
Brincando! Adoro W.A.!
Beijos, Rodrigo.
(seu blog me faz super bem)
Que susto! (sobre o post acima!)
ResponderExcluirAmo Woody Allen, e o Laryl David é muito bom no que faz, como ator e foi mt bem escolhido.
Sobre o post: Cara, vc mandou mt bem nesse post, eu gostei muito e tem umas colocações suas que eu concordo e trago pra minha vida... fico até com vergonha de divulgar meu humilde blog, mal formatado que eu nem decidi o que quero escrever... rs me ajuda...rs
Abraço!
Rodrigo,
ResponderExcluirÉ sempre um prazer ler o seu blog.
Sobre o post, ainda não vi o filme. Espero ver em breve. Woody Allen sempre traz umas reflexões interessantes...
Sobre esse lance der ser sozinho/estar sozinho, acho que vc explora muito bem o tema no seu post. E eu concordo que, por mais que sempre se busque alguma coisa no outro ou no coletivo, existe alguma coisa em nós que não se compartilha, que é nosso e só nosso.
Daí decorre que se projetar no coletivo de maneira coerente [isto é, sem se ausentar e sem depender], é uma tarefa bastante difícil...
Sei lá, me inspirou esse post! Talvez eu aproveite o gancho pra escrever alguma coisa na mesma linha... rsrsrsrs
Abraços! o/
Eu só não acho que o Boris sozinho estava bem com ele próprio e acho que se tem muito a ganhar nas relações, quaisquer que sejam elas. Aprendemos mais rapidamente sobre nós mesmos e sobre as verdades do mundo, se nos dispusermos a isso. Como eu coloquei no meu texto, que você mencionou (e eu agradeço), a questão crucial acho que está em sabermos administrar nossas expectativas. Contudo, concordo quando você fala que temos de aprender a viver com a solidão (ou algo parecido). Nossa sociedade nos impõe e cobra justamente o contrário, mas a solidão, assim como as interações, se fazem necessárias para convivermos de maneira mais saudável conosco mesmo, e com as pessoas, pode nos ajudar a dimencionar melhor as importâncias e desimportâncias de nossas vidas.
ResponderExcluir"Esse é um processo muito perigoso, pois se aproximar do conjunto costuma significar se afastar de si. Passa-se a viver a identidade da relação, e deixa-se de seguir na procura de quem realmente se é. Sem medo de errar, digo também que esse movimento torna a “Melody” uma pessoa menos interessante, pois deixa de ter a possibilidade do brilho nos olhos que tem o poeta quando percebe vislumbrar algo pela primeira vez, e capaz de criar algo pelas próprias mãos.
ResponderExcluirEsse comportamento cria laços fortes de dependência emocional, e faz com que pessoas aceitem grandes tormentas para poder ainda ter ao lado aquele “companheiro(a)” que passa a ser o motivo de suas vidas. A possibilidade de perda dele(a) a colocaria numa condição de ausência de motivos, pois a falta de estímulos alicerçados nos próprios sonhos (pela negligência de si, para si) antecipa o medo da sensação de vazio que se anuncia. Parecem não perceberem o que deixam de ganhar com a “solidão” delas mesmas, em sair de casa e ir fazer um curso de fotografia, roteiro ou física... enfim, cuidar um pouco delas."
Tradução: eu.
bj
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirNossa, valeu pelas palavras!
ResponderExcluirVi o filme, mas na hora não tive esse tipo de reflexão...
Então, Rodrigo. Acabei de ler o post de cima, mas o link de comentários não está aparecendo lá; por isso, comento aqui mesmo.
ResponderExcluirVocê é muito verdadeiro quando escreve, Rodrigo. Eu me vi refletido em muitas das passagens do post, ora como sujeito e ora como objeto da ação.
No final, me deu uma vontade de chorar. Eu não vi os vídeos [confesso que sempre tenho preguiça... rsrsrsrs]. Mas pelo texto mesmo, a sensação que fica é a de que a última parte, a aceitação, não é a mais dolorosa, mas é sobretudo a mais triste das fases. Porque o pontua o fim, de verdade. E esse segundo fim, pelo menos pra mim, é muito mais marcado e muito mais real do que o fim propriamente dito, o primeiro fim, no qual as coisas ainda são meio truvas e existem nacos de esperança dispersos antes de tudo de acabar de verdade e pra sempre.
Té mais! o/